A
comunidade ufológica pode estar procurando por alienígenas, mas com projetos
como o Sky Hub, seu trabalho pode gerar avanços tecnológicos, mesmo que não os
encontre.
Em julho de 1853, quatro imensos e misteriosos navios negros entraram na Baía de Tóquio, lançando fumaça de suas altas chaminés. A marinha japonesa, com seus veleiros de madeira e ostentando mastros altos, cercou os misteriosos navios.
Os marinheiros ficaram admirados no convés de seus barcos, imaginando como
esses quatro bizarros navios de ferro se moviam sem o auxílio do vento ou das
velas.
Essa pequena frota foi comandada pelo comodoro americano Matthew C. Perry a caminho de Edo, capital do Japão, em uma missão para forçar a nação insular a negociar. Como descreveu o professor de comunicação cultural Kazuo Nishiyama, quando os japoneses se depararam com um sistema avançado de propulsão - nesse caso, o motor a vapor -, eles escolheram se envolver em uma mudança social completa, levando a uma intensa revolução científica e tecnológica.
Dois séculos depois, vários meios de comunicação informaram que os aviadores navais que pilotavam as melhores aeronaves dos EUA, na costa da Califórnia, em novembro de 2004, interceptaram um objeto estranho e misterioso. Os pilotos, que conseguiram registrá-lo em vídeo, mais tarde relataram sua capacidade de se mover pelo ar sem asas ou uma fonte visível de propulsão.
De acordo com o testemunho deles, esse UAP, ou fenômeno aéreo não identificado, realizou manobras estranhas e acelerou a uma velocidade impossível de alcançar com a melhor tecnologia de propulsão de hoje. Houve relatos de vários outros incidentes semelhantes.
Assim como os marinheiros na Baía de Tóquio, esses aviadores
ficaram cara a cara com o desconhecido, e sem dúvida perceberam que as melhores
ferramentas projetadas para manter as pessoas seguras em terra não tinham
chance contra o que quer que fosse essa nova tecnologia.
Os recentes incidentes com OVNIs envolvendo a Marinha dos EUA e incursões aéreas não identificadas no espaço aéreo americano deixaram o público se perguntando o que está acontecendo. Se colocarmos de lado a especulação sobre alienígenas de Hollywood e conspirações do governo, ficaremos com uma pergunta irrefutável: há algo lá em cima e desfruta de livre domínio sobre um espaço aéreo soberano.
Para um pequeno grupo de especialistas em segurança, cientistas e empreendedores, isso é algo que vale a pena investigar. E alguns veem a busca contemporânea de se investigar os UAPs como fonte de novas ideias e inovação tecnológica.
"Não somos uma empresa que foge de problemas difíceis, corremos para eles", disse Ben Lamm, CEO da Hypergiant Industries, uma empresa de tecnologia e I.A. do Texas. "Acredito ser algo bom explorar coisas que assustam as pessoas. Se não enfrentarmos nossos medos, eles nos devorarão vivos".
Lamm
é um empreendedor e ex-desenvolvedor de videogames que vendeu suas empresas
anteriores para nomes importantes como Accenture e Zynga. Possuindo vários
contratos industriais e de defesa com a Força Aérea dos EUA, Booz Allen
Hamilton, NASA, Shell, o Departamento de Segurança Interna e outras grandes
agências privadas e governamentais, ele acha a ideia dos OVNIs intrigante.
"Estou preocupado em responder perguntas importantes sobre o universo, e fenômenos aéreos desconhecidos são atualmente uma pergunta importante", disse Lamm em entrevista à Motherboard.
"No momento, sabemos que os UAPs existem. Temos vários vídeos que foram validados pelos militares e veículos de notícias de destaque e bem estabelecidos. Não há razão para não aproveitar a I.A. e os dados. Temos que tentar resolver essas questões".
Lamm vê a pergunta em torno dos UAPs como uma espécie de "tiro na lua". Chegar à lua era o objetivo, mas a tecnologia desenvolvida para tornar possível essa jornada era revolucionária. Lamm não tem certeza se os OVNIs são reais, mas ele acredita que o uso da tecnologia para descobrir isso levará a tecnologias novas e até revolucionárias.
Em fevereiro, a Motherboard informou que Lamm estava desenvolvendo o CONTACT, ou a Ferramenta de Captura Ativa Não Terrestre Contextualmente Organizada, em tradução livre.
Segundo Lamm, a plataforma será composta por satélites, utilizando aprendizado de máquina e inteligência artificial para monitorar passivamente os céus.
Usando tecnologia avançada de radar, conhecida como radar
por indução de onda e radar de abertura sintética inversa, o sistema filtrará
objetos conhecidos, como jatos comerciais, e poderá coletar dados e imagens, em
três dimensões, de quaisquer objetos desconhecidos no céu.
Para Lamm, parte da solução do mistério é usar dados para identificar e rastrear esses objetos desconhecidos.
O benefício de usar a tecnologia que soa vagamente
como algo de um filme do Homem de Ferro, Lamm acredita, é que, à medida que os
dados começam a aparecer, uma imagem melhor pode ser definida do que esses
objetos são.
Esta não é a primeira vez que um projeto que utiliza coleta de dados para investigar objetos aéreos anômalos é lançado.
Em 2008, a Agência de Inteligência de Defesa iniciou o Programa Avançado de Identificação de Ameaças Aeroespaciais (AATIP) para investigar incidentes com OVNIs. O objetivo geral do programa era investigar avistamentos de OVNIs e estabelecer novas teorias sobre como esses objetos funcionavam.
Em junho deste ano, a Motherboard informou que o senador Marco Rubio apresentou um projeto de lei exigindo que o Departamento de Defesa e o Gabinete do Diretor de Inteligência Nacional elaborassem um relatório para divulgar o que exatamente os vários ramos militares e de inteligência estão fazendo em relação às incursões de UAPs.
O projeto divulgou que o governo -
principalmente o Escritório da Inteligência Naval - estava ativamente engajado
nem dar continuidade à missão do AATIP.
"O Congresso apropriou fundos para a pesquisa de UAPs, mas não determinou que o Departamento de Defesa, ou os departamentos ou agências de inteligência apoiassem o programa AATIP", disse Chris Mellon, ex-Vice-Secretário Adjunto de Defesa da Inteligência dos Estados Unidos, à Motherboard em entrevista.
"Talvez os patrocinadores do AATIP, no Capitólio, pensassem
ingenuamente que a burocracia do Departamento de Defesa funcionaria de boa fé e
faria o possível para apoiar a investigação do AATIP, mas isso não aconteceu.
Portanto, o AATIP ficou mais isolado do que integrado e pareceu ter feito
progressos limitados".
Atualmente,
Mellon é consultor da To the Stars Academy of Arts & Science, de Tom
DeLonge, e aparece regularmente no programa Unidentified: Inside America's UFO
Investigation, do History Channel. Antes disso, ele passou uma década
trabalhando no Capitólio em várias funções de segurança e inteligência.
"Fiquei chocado ao saber que aviadores navais e grupos de combate de porta-aviões estavam detectando dezenas de UAPs na Costa Leste. O que me horrorizou completamente, no entanto, foi o fato de que essas informações estavam sendo suprimidas e essas unidades não estavam recebendo apoio. De uma perspectiva da Inteligência, achei isso totalmente inaceitável", disse Mellon.
O espaço
aéreo americano, aparentemente, estava sendo violado repetidamente por
aeronaves desconhecidas e avançadas. Segundo Mellon, altos oficiais militares e
civis dos EUA não recebiam avisos sobre essas incursões. Mellon considera isso
uma "falha de inteligência".
"Independentemente de qual seja sua origem ou intenção, a comunidade de inteligência está falhando com o país se aeronaves não identificadas puderem reconhecer operações do Departamento de Defesa por meses e anos a fio, sem qualquer notificação de altos oficiais em posição de responder", disse Mellon.
"Até o momento, parece haver pouca ou nenhuma contribuição para a tecnologia do Departamento de Defesa resultante do estudo de UAPs, porque o DoD está apenas começando a despertar e levar o assunto a sério."
O
ex-chefe do programa AATIP do Pentágono, Luis Elizondo, concorda com a
avaliação geral de Mellon, mas explicou que depois de deixar o programa do
Pentágono de investigação de UAPs em 2017, as coisas mudaram.
"Infelizmente, não posso falar oficialmente sobre a natureza atual da Força-Tarefa para UAPs, mas tenho todas as indicações para acreditar que ela está em funcionamento e está executando a missão de acordo com os princípios fundamentais do AATIP", disse Elizondo à Motherboard em uma entrevista.
Elizondo explicou que a atual força-tarefa tem melhores recursos e "é muito mais robusta" do que o AATIP, enquanto servia no Pentágono. No entanto, considerando que a missão geral é não apenas investigar, mas "entender" como esses objetos funcionam, mais financiamento seria benéfico.
"Vamos analisar desta maneira. Digamos que queremos saber como funciona uma nova aeronave russa. Podemos coletar informações sobre ela. Podemos conversar com pessoas que a pilotaram. Podemos conversar com a empresa que a fabrica. Mas a melhor maneira de entendê-la é tentar pôr as mãos em uma e explorá-la para que possa fazer sua própria versão ", disse Elizondo.
Paralelamente a esses esforços oficiais, a comunidade ufológica continua inabalável a se envolver em pesquisas.
Enquanto o governo ainda está interessado no assunto, a comunidade ufológica tradicional sempre tentou encontrar suas próprias soluções.
E, à medida que a tecnologia continua a se desenvolver, os operadores
astutos tentam novas maneiras de coletar dados sobre os UAPs.
"Se olhar os vídeos ou imagens de OVNIs, eles geralmente são de baixa qualidade, embaçados ou apenas imagens que parecem retroespalhar a luz", disse Steve McDaniel, engenheiro de software de Maryland.
Ele trabalhou para empreiteiras de defesa e outras empresas de Big Data, como a Intel. "Nosso objetivo é permitir que a coleta de dados de alta fidelidade de todo o mundo crie um conjunto de dados digno de pesquisas científicas".
McDaniel e seus colegas estão desenvolvendo o Sky Hub. Essa plataforma de observação de código aberto coleta dados de vídeos e sensores de fenômenos aéreos desconhecidos e os agrega de rastreadores em todo o mundo em um banco de dados público central.
"Basicamente, isso se resume ao desenvolvimento de uma plataforma e uma abordagem para executar a Ciência Observacional sobre o fenômeno. Estamos fornecendo as ferramentas para fazer exatamente isso", disse McDaniel à Motherboard em uma entrevista.
De
acordo com o site do Sky Hub (https://skyhub.org),
o hardware do Sky Hub é orientado pela comunidade e qualquer pessoa pode
construir seu sistema com peças compradas na Amazon. De acordo com McDaniel, um
equipamento Sky Hub decente consiste em um microcomputador NVIDIA Jetson Nano,
vários sensores, como um receptor GPS e um módulo Witmotion, e uma câmera HD.
Esse sistema pode custar entre 300 e 1.000 dólares. O software gratuito e de
código aberto está no GitLab.
"O
desenvolvimento de uma plataforma de ciência da observação consome tempo e me
deu muito trabalho. Investi milhares de horas arquitetando, desenvolvendo e
implementando todo o sistema", disse McDaniel. Inicialmente, ele foi o
único engenheiro do projeto, mas desde então se juntou ao desenvolvedor de
software Corey Gaspard.
"Os engenheiros se juntam a projetos de código aberto porque acreditam nos objetivos do projeto. Todas as crenças pessoais são deixadas de lado com o Sky Hub.
O projeto não faz suposições. Se os engenheiros querem saber a resposta sobre o que são os UAPs, nós os convidamos a encontrar a resposta conosco", disse McDaniel, observando que era difícil encontrar engenheiros.
O assunto dos UAPs ainda possui um forte estigma; McDaniel disse que a melhor maneira de reduzir esse estigma é fornecer dados repetíveis e verificáveis.
"A maioria dos eventos com UAPs no passado só tinha testemunhos oculares, o que não é confiável. Os sistemas Sky Hub fornecerão dados concretos sobre eventos que não podem ser contestados", disse McDaniel.
Mesmo sem caçar OVNIs, McDaniel vê um importante valor científico no projeto.
"À
medida que a rede Sky Hub cresce, pode ser possível usar nosso conjunto de
dados para rastrear padrões de migração de aves, usar dados meteorológicos e
atmosféricos detalhados e entender em larga escala como os diferentes eventos
(observados por vídeo, com dados de sensor associados) afetam o ambiente local.
E toda essa coleta de dados será marcada com a hora e a localização do
GPS", afirmou.
"A tecnologia há muito tempo é influenciada pelo que chamaríamos de 'ficção científica'", disse o Dr. Matthew Hersch, que ensina história da ciência em Harvard.
Ele observou que, mesmo no século XIII, as melhores mentes imaginavam automóveis e elevadores; as ideias humanas sempre circulavam a imaginação de coisas impossíveis.
"As pessoas podem imaginar muito mais do que podem construir, e as mitologias dos OVNIs abrangem uma variedade de proposições que são totalmente impossíveis ou tecnicamente tolas", disse Hersch à Motherboard.
"Dadas essas e
outras limitações, não tenho muita confiança na capacidade de obter novas
tecnologias surpreendentes de rumores sobre OVNIs. Há muito pouco desses
rumores que fornecem novidades, e os engenheiros aeroespaciais tentam
entendê-los há 70 anos sem sucesso".
Como
Lamm e McDaniel, Mellon argumenta que as anomalias aéreas são "promessa de
ouro para a ciência e a inteligência". Infelizmente, eles estão ligados a
um estigma profundamente enraizado que dissuade a busca científica legítima e
prejudica a reputação profissional.
"Trata-se de uma terrível incompatibilidade para o que deveria ser uma comunidade de inteligência curiosa, inquisitiva e científica", disse Mellon.
"Aqueles que fornecem novas informações e insights devem ser recompensados em vez de penalizados". McDaniel concorda, afirmando que é difícil encontrar engenheiros para trabalhar no Sky Hub porque eles não querem se apegar a algo que lida com OVNIs.
Lamm também reconhece o problema, mas observa que a grande maioria dos desenvolvimentos tecnológicos que desfrutamos hoje era impossível.
"Quando decidimos que algo é impossível ou 'ficção científica', esquecemos que quase tudo era aparentemente impossível: voar, dirigir, satélites, pousar na lua. No entanto, a engenhosidade humana provou repetidamente que nada é impossível", Lamm disse.
"É essa investigação do impossível que leva a grandes avanços no progresso humano. Os OVNIs podem não existir, mas tentar descobrir se eles existem (e fazendo essa pergunta de forma funcional) é o tipo de desafio que forçará a humanidade a pensar de novas maneiras, imaginar novas possibilidades e desenvolver tecnologias que podem parecer impossíveis".
Se o fenômeno OVNI é uma completa ilusão, uma farsa ou algo fundamentalmente mais interessante, há poucas dúvidas de que o mito tenha gerado muita imaginação.
No entanto, se há algum aspecto genuinamente desconhecido nos fenômenos aéreos não identificados, é que a humanidade pode estar caminhando para sua próxima grande revolução tecnológica.
Afinal, tudo o que foi necessário para o Japão reestruturar sua nação foram quatro canhoneiras americanas a caminho de Edo.
* * *
Tradução: Tunguska Legendas
Artigo original: Vice
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